Terapia para mendingos usará ayahuasca. O ESTADO DE SÃO PAULO/SP

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Projeto de psiquiatra tem por objetivo recuperar dependentes de drogas e conseguir a reintegração social

Uma nova e polêmica experiência com o chá de ayahuasca, a conhecida bebida ingerida pelos adeptos da seita do Santo Daime, está prestes a ser iniciada em São Paulo. o psiquiatra e ex-mestre da União do Vegetal Wilson Gonzaga da Costa pretende oferecer a droga psicoativa a moradores de rua para tratamento de dependências e reintegração à sociedade. "Queremos proporcionar a recuperação mental e espiritual", afirma Costa.

O psiquiatra começou a envolver-se com moradores de rua há mais de um ano. No início, porém, limitava-se a distribuir sopa para um grupo no Largo Santa Seca, região central da capital. Há três meses, surgiu a idéia de dar o chá de ayahuasca como forma de tratamento. "A missão me foi dada pela força, em um dia que estava sob o efeito do chá", revela.

Costa garante que não tem a intenção de montar uma nova seita. "Estou apenas cumprindo minha missão", diz. Ex-integrante do Conselho Federal de Entorpecentes, o psiquiatra vai enfrentar uma intensa oposição. "Vou fazer de tudo para evitar que esse abuso se concretize", afirma o coordenador da Unidade de Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ronaldo Laranjeira. "Isso é uma loucura", completa.

Laranjeira observa que a pesquisa vai usar uma população carente como alvo. "Muitos apresentam danos cerebrais, provocados pelo abuso de drogas", comenta. "Não há estudos sobre os efeitos do chá em pessoas tão vulneráveis." Para ele, há muitas outras formas de tentar ajudar moradores de rua. "Oferecer uma droga que pode piorar ainda mais a situação do grupo é, no mínimo, uma temeridade", diz. "O mais grave é que o psiquiatra está lidando com uma população muito carente, desorganizada, que é fácil manipular", completa.

Costa toma a bebida há 18 anos e está confiante. Ele explica por que a ayahuasca pode ter efeito benéfico em pessoas dependentes de drogas: "Ela provoca um estado alterado de consciência que pode levar o indivíduo a perceber seus conflitos mais íntimos." O psiquiatra diz que é como se o Daime desencadeasse uma auto-análise "muito intensa e produtiva". Mas ele mesmo admite que o uso tem de ser controlado. Pessoas com esquizofrenia ou com quadros intensos de paranóia não devem usar de forma nenhuma a substancia", diz. Há outra restrição: a droga deve ser usada apenas em rituais, para evitar que a experiência possa desencadear uma psicose. "Por essa razão, o chá será tomado sempre em um local fechado, seguindo os preceitos aprendidos por mim na União do Vegetal."

Experiência - Além da inspiração da "forca", Costa afirma ter obtido sucesso com a primeira experiência, feita há cerca de um mês. O chá foi oferecido ao mecânico desempregado e morador de rua Humberto, de 48 anos.

O psiquiatra explica por que escolheu Humberto: "Durante nossa convivência, ele deu várias demonstrações de que gostaria de mudar", afirma o psiquiatra. "Humberto vinha bêbado ou sob o efeito do craque, mas disposto a sair da rua", relata o psiquiatra. 

Costa deu emprego e roupas ao mecânico. Depois de um tempo, ofereceu o chá. "Ele disse que a ayahuasca daria uma sensação de bem-estar, paz e resolvi experimentar", lembra Humberto. O mecânico, porém, não consegue relatar qual o efeito provocado. "Fiquei bem na hora e nos dias seguintes: sinto confiança e uma força que não sei de onde vem", descreve. Segundo ele, desde então, não voltou a usar craque. "É difícil, mas estou conseguindo.''

Humberto garante que mudou depois de se dar conta de todo o processo de destruição pelo qual passou. "Há alguns anos, tinha uma família e uma casa cheia de eletrodomésticos", afirma. Como tantos outros viciados, depois de começar a fumar craque, o mecânico vendeu tudo, até mesmo o botijão de gás. "Fiquei maltrapilho, mas agora tenho o prazer de poder entrar em um ônibus e sentar normalmente ao lado de outro passageiro."

O tempo de abstinência ainda é curto para dizer se Humberto está livre de recaídas. Mesmo que a melhora seja constatada, Costa admite que outros fatores podem ter contribuído. "Demos a ele emprego, um grupo de referência e o valorizamos." Mesmo ainda sem parâmetros certos, a experiência vai continuar. "Estamos dando o chá à nossa equipe e, em uma segunda etapa, queremos preparar os próprios moradores para oferecer assistência ao grupo."

Resultados de estudos são controvertidos

Idéia é comprovar influência sobre o abandono do álcool

Os efeitos terapêuticos da ayahuasca estão sendo investigados por pesquisadores do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. Os estudos, que em nada se relacionam com a experiência do médico Wilson Gonzaga Costa, apresentam resultados surpreendente e, ao mesmo tempo, controvertidos.

O psiquiatra Eliseu Labigalini Júnior apresentará no próximo mês sua tese sobre o uso da ayahuasca por ex-dependentes de álcool. Em 1993, pesquisadores de vários centros fizeram uma investigação em uma comunidade da União do Vegetal (UDV), na Amazônia. Durante o estudo, foram realizados testes e entrevistas com 15 integrantes da seita, que tomavam o chá havia mais de dez anos. o mesmo foi feito com um grupo de controle. ''Verificamos que 11 dos integrantes da seita tinham uma história de uso moderado e severo de álcool, antes de ingressar na UDV", conta Labigalini Júnior.

Pouco tempo depois de entrarem na seita, o consumo foi abandonado. "Muitos diziam perceber, durante o estado alterado de consciência, que estavam trilhando um caminho que inevitavelmente os levaria à ruína, a menos que mudassem radicalmente de conduta", revela.

Ex-dependentes - As fortes experiências fizeram com que, aos poucos, o álcool fosse deixado de lado. "Fiquei curioso com esse resultado e, por isso, resolvi estudar novamente o assunto", explica Labigalini Júnior.

Em sua tese, o psiquiatra acompanhou os casos de quatro ex-dependentes de álcool. A exemplo do que ocorreu com integrantes da UDV no Amazonas, todos abandonaram o vício depois de entrar na seita. "Eles não trocaram uma dependência por outra", garante Labigalini Júnior. Segundo ele, até hoje não há nenhum estudo que comprove que o chá vicia.

De acordo com os relatos colhidos pelo psiquiatra, o estado provocado pelo chá permite o contato com todos os níveis de consciência - o chamado self.

Mas Labigalini Júnior reconhece que a ayahuasca apresenta alguns riscos. "O uso do alucinógeno tem de ser feito dentro de um contexto ritualizado", afirma. Caso contrário, há a possibilidade de o chá acarretar crises psicóticas. "A ayahuasca provoca uma espécie de ruptura das barreiras do Consciente", diz. "O ritual funciona como um limite protetor."

Todos os entrevistados ressaltaram que experiências com o chá trouxeram mudanças importantes. "Eles se deram conta do processo que estabeleceu a dependência do álcool", afirma.

Em todas as entrevistas, também há referências constantes sobre a sensação da presença de Deus. "As modificações no comportamento ocorreram lenta mente e por meio de uma tentativa concreta de mudança de hábitos."

Para o diretor do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Arthur Guerra de Andrade, o estudo de Labigalini Júnior é "ingênuo". "Em vez de fazer entrevistas, ele deveria indicar a um grupo o uso da ayahuasca e, a outro, um tratamento com drogas convencionais."

O coordenador da Unidade de Álcool e Drogas da Unifesp, Ronaldo Laranjeira, é ainda mais crítico: "Todos sabemos que a religião em muitos casos faz com que o dependente deixe de usar a bebida", afirma.

Mas Labigalini Júnior se defende. "Em muitos casos, o que ocorre é que o dependente apenas transfere o objeto da compulsão", observa. "Ele deixa o álcool e torna-se um fanático religioso", completa.

O psiquiatra afirma que esse comportamento não foi constatado entre os integrantes da UDV. "Ficou claro que, com a transformação provocada pela ayahuasca, a causa da compulsão foi sanada." (L.F.)

Pesquisa investiga efeitos sobre sistema emocional

Psiquiatra da Unifesp usa colegas como cobaias em estudo iniciado há 8 meses

A forma como a ayahuasca interfere no sistema emocional está sendo detalhadamente acompanhada em uma pesquisa desenvolvida há oito meses pelo psiquiatra da Unifesp, Lúcio Rodrigues. Para fazer o estudo, ele conta com a colaboração de colegas que nunca haviam tomado o chá. Eles concordaram em participar, cada um, de três rituais e contar a experiência ao pesquisador.

"A primeira entrevista eu não levo em consideração, pois geralmente o ritual inicial vem acompanhado de grande expectativa", diz Rodrigues. Em entrevistas minuciosas, o psiquiatra pretende detectar o processo desencadeado pelo chá.

De acordo com o resultado obtido, o uso terapêutico da droga poderá ser pesquisado com maior profundidade. "A ação das substâncias alteradoras do estado de consciência sempre foi alvo de pesquisas sérias", diz o psiquiatra. "No entanto, depois da década de 60, quando as drogas começaram a ser usadas fora de rituais, houve banimento e grande preconceito."

Rodrigues lamenta o retrocesso. "Esse tipo de substancia talvez possa ajudar pessoas a entrar em estado de profundo auto-conhecimento", diz. O grande erro, no entanto, é usá-la fora do contexto ritual. "Sabemos que, quando usadas em seitas, as chances de ocorrerem surtos psicóticos são reduzidas praticamente a zero."

A exemplo do que constata o psiquiatra Eliseu Labigalini, também da Unifesp, Rodrigues acredita que o chá possa ser um instrumento de ajuda para contornar problemas graves como dependências. Para ele, o termo drogas alucinógenas - classe em que está incluída a ayahuasca - não é correto. "A expressão passa a idéia, incorreta, de que a substância provoca a deturpação da realidade." Há uma corrente que usa o termo enteógenas - que provoca um conhecimento do deus interior. "Não é necessariamente uma referência ao místico, mas à totalidade da consciência."

A pesquisa de Rodrigues pode ainda constatar como se comportam, ao tomar o chá, pessoas sem identidade religiosa. "Pelos relatos feitos por integrantes da seita, percebemos que a ayahuasca desencadeia um processo em que todos os níveis de consciência afloram." Um efeito que poderia ser obtido em um processo longo de análise. "Precisamos saber se o mesmo ocorre com quem toma o chá nos rituais, mas não se identifica totalmente com os preceitos das seitas." (L.F.)

Droga é ligada a rituais

A ayahuasca já fazia parte das celebrações indígenas antes da colonização

Os índios chamam-na de vinho da alma e vinho dos mortos. Em comunidades mestiças, ela é conhecida por Daime, caapi, pinde. Feita da combinação de um cipó e de uma planta chamada, chacrona ou rainha, a ayahuasca sempre esteve vinculada a rituais religiosos. Antes mesmo da colonização européia, tribos incluíam o chá nas celebrações. Atualmente, ela é usada em cerca de 20 seitas, que reúnem 10 mil seguidores.

A mais conhecida é a do Santo Daime, fundada na década de 20 pelo agricultor Irineu Serra. Os adeptos das seitas reúnem-se duas vezes por mês em rituais em que bebem o chá, cantam hinos que misturam temas de catolicismo e espiritismo e dançam. Na União do Vegetal (UDV), criada na década de 50, a música com temas religiosos também está presente.

O psiquiatra da Unifesp, Lúcio Rodrigues, explica que a rainha contém dimetiltriptamina (DMT), substância com efeitos antidepressivos, geralmente decomposta por via oral. Desde 1961, a DMT, em, sua forma sintética, é banida para uso humano pelo International Narcotics Control Board, órgão da Organização das Nações Unidos (ONU). No Brasil, o uso do chá é permitido pelo Conselho Federal de Entorpecentes, mas com restrições. A ayahuasca somente é liberada para uso religioso. Crianças, mesmo que acompanhadas por pais, não devem ingerir o chá. (L.F.)




Fonte: Departamento de comunicação e Marketing Institucional _Universidade Federal de São Paulo.

 

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