Ayahuasca: Uma História Etnofarmacológica

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por Dennis J. McKenna, ph.D.
INTRODUÇÃO
Das inúmeras plantas alucinógenas utilizadas pelas populações indígenas da Bacia Amazônica, talvez nenhuma delas seja tão interessante ou complexa -no sentido botânico, químico ou etnográfico -como a beberagem denominada por muitos ayahuasca, caapi ou yagé. Ela é mais conhecida como ayahuasca, termo da língua quéchua que significa “cipó das almas” e que tanto é aplicado para a beberagem como para uma das plantas básicas utilizadas na sua preparação, ou seja, um cipó malpighiáceo da floresta, cujo nome científico é Banisteriopsis caapi (Schultes, 1957). No Brasil, a transliteração desta palavra quéchua para o português resultou no termo hoasca. A ayahuasca, ou hoasca, ocupa uma posição central na etnomedicina mestiça, de tal maneira que a natureza química dos seus constituintes ativos e  sua forma de uso tornam seu estudo relevante para os temas contemporâneos da neurofarmacologia, da neurofisiologia e da psiquiatria.
O QUE É A AYAHUASCA?
No contexto tradicional, a ayahuasca é uma beberagem preparada através da fervura ou infusão das cascas e ramos da Banisteriopsis caapi junto à mistura de outras plantas. E, entre estas, o espécime mais comumente empregado é a rubiácea do gênero Psychotria, especialmente a P. Viridis, cujas folhas contêm os alcalóides necessários para o efeito psicoativo. A ayahuasca é o único preparado cuja atividade farmacológica depende de uma interação sinérgica entre os alcalóides ativos de suas plantas. Um dos seus componentes, a casca da Banisteriopsis caapi, contém alcalóides Beta-carbolinas, potentes inibidores MAO. Quanto aos outros componentes, as folhas da Psichotria viridis ou de outros espécimes semelhantes, contêm o potente agente psicoativo N,N-dimetiltriptamina (DMT). Por si só, o DMT não é oralmente ativo quando ingerido; no entanto, poderá se tornar oralmente ativo em presença de um inibidor MAO periférico, e esta interação é justamente a base da ação psicotrópica da ayahuasca (McKenna, Towers, & Abbott, 1984).
Segundo ainda outros relatos (Schultes, 1972), existem alguns espécimes do gênero Psichotria utilizados de maneira similar em outras regiões da Amazônia. No nordeste da Amazônia, por exemplo, particularmente no Putumayo colombiano e no Equador, as folhas da Diplopterys cabrerana, um cipó da selva que pertence à mesma família da Banisteriopsis, são adicionadas à beberagem em lugar das folhas da Psychotria. O alcalóide presente na Diplopterys é idêntico ao dos espécimes da Psychotria, tendo, portanto, efeito farmacológico similar ao destes últimos. No Peru, além da Psychotria e da Diplopterys, diversos outros espécimes são freqüentemente adicionados, e sua escolha depende dos propósitos mágicos, medicinais ou religiosos pelos quais a droga será consumida.
Embora seja utilizada ocasionalmente uma farmacopéia virtual de outros espécimes, as misturas mais comumente empregadas (além da Psychotria componente constante do preparado em questão) encontram-se entre os vários gêneros de solanáceas; incluindo o tabaco (Nicotiana sp.), a Brugmansia sp., e a Brunfelsia sp. (Schultes, 1972; McKenna, 1995). Tais gêneros solanáceos são conhecidos por conter alcalóides como a nicotina, a escopolamina e a atropina, que afetam tanto a adrenérgica central e periférica como a neurotransmissão colinérgica. Mas as interações destes agentes com os combatentes serotoninérgicos e os inibidores MAO ainda são essencialmente desconhecidas na medicina moderna.
UM FOCO NA PERSPECTIVA HISTÓRICA ATUAL
Neste artigo, apresentamos uma breve abordagem sobre a história das investigações etnofarmacológicas da ayahuasca, justamente porque esta beberagem vem sendo um tópico fascinante para etnógrafos, botânicos, químicos e farmacêuticos desde que se tornou conhecida na metade do século XIX. Apenas para efeito expositivo, a história da etnofarmacologia da ayahuasca poderá ser dividida em diversos segmentos, começando pelas suas origens préhistóricas até chegar no presente, pois esta beberagem ainda constitui uma área ativa de pesquisa. A história moderna da ayahuasca pode ser datada a partir da metade do século XIX; embora nosso foco seja lançado sobre seu percurso etnofarmacológico, cumpre observar que sua singularidade vem causando historicamente uma série de impactos, não só na religião, na política e na sociedade em geral como também na ciência (um exemplo: a aceitação, por parte do governo brasileiro, da legitimidade do uso sacramental do chá de ayahuasca pela UDV e outras seitas sincréticas do Brasil). As implicações e conseqüências do uso continuado e crescente desta beberagem podem ser visíveis em vários níveis do presente e também do futuro.

RAÍZES PRÉ-HISTÓRICAS DA AYAHUASCA
As origens do uso da ayahuasca na bacia amazônica estão perdidas por entre as névoas da pré-história. Ninguém pode afirmar com certeza onde se deu o início desta prática, embora se possa dizer com alguma certeza que sua utilização disseminou-se por inúmeras tribos indígenas da bacia amazônica, e que ela acabou chamando a atenção dos etnógrafos ocidentais na metade do século XIX. Este fato atesta a antigüidade, apesar do mínimo conhecimento que se tem a respeito. O etnógrafo equatoriano Plutarco Naranjo sumariou a pouca informação disponível sobre a pré-história da ayahuasca (Naranjo, 1979, 1986). Existem evidências arqueológicas abundantes -vasos de cerâmica, estatuetas antropomórficas, e outros artefatos -de que o uso desta planta alucinógena se estabeleceu na Amazônia Equatoriana por volta de 1.500-2.000 a.C.
Infelizmente, a maior parte das evidências científicas -pós vegetais, bandejas para inalação e cachimbos -está relacionada com o uso de outras plantas psicoativas como a coca, o tabaco, o pó alucinógeno derivado dos espécimes da Anadenanthera conhecido como “vilka”, e várias outras, e não com a ayahuasca. Não existe nada sob a forma de material iconográfico, nem mesmo remanescentes botânicos que tenham sido preservados, que possa estabelecer o uso pré-histórico da ayahuasca; é provável que as culturas pré-colombianas, sofisticadas na utilização de grande variedade de plantas psicotrópicas, tenham tido uma relação familiar com a ayahuasca e seu preparo. A falta de datas nesta matéria é frustrante, particularmente no que diz respeito à questão que tem fascinado os etnofarmacólogos desde os anos 1960, quando sua importância veio à baila, através da obra de Richard Schultes e seus discípulos.
cipó banisteriopsis caapiComo mencionado acima, a ayahuasca tem uma posição especial entre as plantas alucinógenas, pois é preparada com a combinação de duas plantas: as cascas ou os ramos dos espécimes Banisteriopsis junto às folhas dos espécimes Psychotria, ou com outras misturas contendo DMT. A beberagem depende desta combinação singular para desencadear sua atividade. Existe a probabilidade de ter sido um acidente a descoberta da síntese dessas duas plantas como um preparado ativo. Nenhuma das duas é particularmente ativa quando sozinha; contudo, sabemos que esta unificação fortuita ocorreu em algum ponto da pré-história, ou seja, a ayahuasca foi “inventada” naquela época.
psychotria viridisMesmo que jamais venhamos a saber como ocorreu esta descoberta e quem foi o responsável, existem diversos mitos fascinantes sobre o tema. Os ayahuasqueiros do Peru nos dirão que o conhecimento deles vem diretamente das “plantas mestres” (Luna, 1984), ao passo que os mestres do culto sincrético brasileiro da UDV nos dirão com a mesma convicção que este saber é oriundo do “primeiro cientista”, o rei Salomão, que teria recebido toda a tecnologia de um rei inca por ocasião de uma visita, pouco divulgada, que ele fizera ao Novo Mundo na antigüidade. Na falta de datas, estas são as únicas tentativas de explicação; tudo o que podemos afirmar com segurança é que o conhecimento das técnicas de preparação da ayahuasca, e também das plantas que lhe são apropriadas, já estava difundido na Amazônia quando seu uso chamou a atenção de algum pesquisador moderno.
A DESCOBERTA CIENTÍFICA DA AYAHUASCA NO SÉCULO XIX
Talvez a pré-história arqueológica da ayahuasca permaneça pelo resto do tempo intrinsecamente ligada aos mitos, a menos que seja descoberto algum artefato que nos capacite a estabelecer a época do seu uso.
Por outro lado, a precisão é bem maior quanto à história moderna ou científica da ayahuasca. Sua origem deu-se em 1851, quando célebre botânico inglês Richard Spruce deparou-se com a utilização de uma beberagem intoxicante entre os índios da tribo Tucano do rio Uaupés, no Brasil (Schultes, 1982). Spruce coletou espécimes floridos do grande cipó usado como fonte da beberagem, e esta coleta deu a base para sua classificação de plantas tais como a Banisteria caapi; mais tarde, em 1931, esta planta foi reclassificada como Banisteriopsis caapi pelo taxiólogo Morton, como parte de sua revisão dos conceitos genéricos no interior da família das Malpighiáceas.
Sete anos depois, Spruce encontrou o mesmo cipó sendo usado pelos índios Guahibo no alto Orinoco da Colômbia e da Venezuela; no final daquele mesmo ano, este botânico descobriu que os índios da tribo Záparo dos Andes do Peru tomavam uma beberagem narcótica preparada com a mesma planta, e que eles a chamavam de ayahuasca. Embora o achado de Spruce anteceda qualquer outra narrativa publicada, suas descobertas só vieram a público em 1873, quando foram mencionadas numa narrativa popular que descrevia suas explorações na Amazônia (Spruce, 1873). A exposição completa só pôde aparecer em 1908, quando Spruce publicou seu relato na antologia de A. R. Wallace, Notes of a Botaniston the Amazon and Andes (Spruce, 1908). O crédito pelos primeiros estudos sobre o uso da ayahuasca pertence ao geógrafo equatoriano Manuel Villavicencio que, em 1858, escreveu a respeito de sua utilização na feitiçaria e na divinação do alto do rio Napo (Villavicencio, 1858). Apesar de Villavicencio não ter fornecido detalhes botânicos sobre a planta aí empregada, o relato de sua auto-intoxicação não deixou dúvida em Spruce de que ambos escreviam sobre a mesma coisa.
No decorrer das últimas décadas do século XIX, outros etnógrafos e exploradores continuaram relatando seus encontros com uma beberagem intoxicante, usada por inúmeras tribos indígenas da Amazônia, e que era preparada a partir das “raízes” (Crévaux, 1883), de “diversos arbustos” (Koch-Grünberg, 1909), ou de “cipós” de proveniência botânica incerta (Rivet, 1905). Ao contrário de Spruce, que teve a brilhante idéia de coletar provas dos espécimes botânicos e dos materiais designados para eventuais análises químicas, os investigadores que o seguiram não colheram os espécimes das plantas observadas por eles, e seus relatos são considerados de pouca importância histórica. A publicação de Simson (1886) sobre a utilização da ayahuasca entre os índios equatorianos constitui uma notável exceção.
Nela, o autor nos conta que “os indígenas bebem uma mistura que reúne o yagé, as folhas de sameruja e o pau de guanto, e este amálgama resulta na ayahuasca, um deleite geralmente obtido da fervura destes componentes”. Nenhum destes ingredientes foi identificado, assim como não foram coletadas provas deles, embora este relato tenha estabelecido uma das primeiras indicações de que outros espécimes também eram empregados na preparação da ayahuasca.
Apesar de Richard Spruce e outros exploradores da Amazônia terem se dedicado aos primeiros estudos da ayahuasca desde 1851, a base de sua pesquisa só foi estabelecida com o importante trabalho sobre a sua química, realizado na segunda década do século XX. O século XIX testemunhou o nascimento de vários produtos químicos naturais, começando pelo isolamento da morfina, oriunda do ópio das papoulas, trabalho realizado em 1803 pelo farmacêutico alemão Sertüner.
O grande número de produtos naturais, isolados pela primeira vez naquele período, era de alcalóides, provavelmente porque estes constituem algumas bases relativamente fáceis de serem isoladas, e as plantas que os contêm possuem atributos medicinais importantes, cujas propriedades farmacológicas óbvias são freqüentemente dramatizadas. Foi durante este período efervescente de descobertas dos alcalóides que o químico H. Gõbel isolou a harmalina, a partir das sementes da Arruda Síria, Peganum harmala. Seis anos mais tarde, em 1847, a harmina foi isolada destas sementes pelo seu colega J. Fritsch. Cinqüenta e poucos anos mais tarde, em 1901, Fisher isolou um terceiro alcalóide -o harmalol –das sementes da Arruda Síria.
Tal como as outras Beta-carbolinas, que depois serviram de base para a nomeação do epíteto Peganum harmala, a harmina mostrou-se mais tarde idêntica à maioria das Beta-carbolinas encontradas na Banisteriopsis caapi. A definição mais precisa para a equivalência existente entre a Beta-carbolina da ayahuasca e a harmina da Arruda Síria foi estabelecida nos anos 1920, depois da harmina ter sido isolada de maneira independente por diversos investigadores e recebido uma variedade de nomes. No final do século XIX, em 1895, ocorreu um evento significativo para a história científica da ayahuasca: deram-se as primeiras investigações dos efeitos da harmina sobre o sistema nervoso central, realizadas em animais, por Tappeiner; os resultados iniciais foram seguidos mais sistematicamente por Gunn, em 1909, que demonstrou que seus efeitos mais intensos advinham da estimulação motora do sistema nervoso central com tremores e convulsões, seguida ou acompanhada por paralisia geral e pulsação fraca (Gunn, 1935).
A AYAHUASCA NO INÍCIO DO SÉCULO XX (1900 -1950)
As primeiras décadas do século XX testemunharam a publicação detalhada dos relatos de Spruce a respeito de suas explorações amazônicas e suas observações sobre o uso da beberagem narcótica entre as diversas tribos com as quais estabeleceu contato. Apesar de já terem sido publicados antes alguns breves relatos de Spruce e outros investigadores sobre a ayahuasca, seu conhecimento mais palpável deu-se com a publicação da narrativa das viagens daquele pesquisador, no livro editado em 1908 por A. R. Wallace, naturalista célebre, além de codescobridor da teoria da evolução. Naquela narrativa, a beberagem foi retirada da obscuridade acadêmica, para vir à luz e despertar a atenção de outros pesquisadores mais sensíveis.
Neste período inicial do século XX, o progresso no entendimento da ayahuasca teve lugar em duas frentes principais: na taxionomia e na química. Apesar de algumas exceções notáveis, as investigações farmacológicas sobre as propriedades da ayuahuasca mantiveram-se relativamente aquietadas nesta mesma época.
Durante este período, a história botânica da ayahuasca resume-se à combinação surpreendente do excelente trabalho taxionômico com a atividade detetivesca realizada por alguns, junto a uma seqüência de erros notórios cometidos por outros. Em 1917, Safford afirmou sua certeza de que a ayahuasca e a beberagem conhecida como caapi eram idênticas e derivavam da mesma planta. Em 1921, o antropólogo francês Reinberg aumentou a confusão quando afirmou que a ayahuasca era um termo que se referia à Banisteriopsis caapi, mas que o yagé era preparado com uma planta da família apocinácea Haemadictyon amazonicum, hoje corretamente classificada como Prestonia amazonica. A persistência deste erro, que aparentemente teve origem na leitura equivocada e mal interpretada dos relatos de Spruce, se propagou por toda a literatura dedicada à ayahuasca ao longo dos 40 anos seguintes. Finalmente, a publicação de um estudo de Schultes e Raffauf refinou todo o equívoco desse tipo de identificação (Schultes e Raffauf, 1960), apesar de vez por outra ele ainda aparecer na literatura técnica.
Entre as investigações que ajudaram a clarear o entendimento taxionômico da botânica da ayahuasca devem ser mencionados os trabalhos realizados em 1922 por Rusby e White na Bolívia (White, 1922) e ainda a publicação de Morton, em 1930 das várias anotações feitas pelo botânico Klug no Putumayo colombiano. A partir das coleções de notas realizadas por Klug, Morton descreveu um novo espécime de Banisteriopsis -a B. inebriens -usado como alucinógeno; entretanto, ele também afirmou que pelo menos três espécimes, a B. caapi, a B. inebriens e a B. quitensis eram utilizadas de um modo similar, e que dois outros espécimes -a Banisteria longialata e a Banisteriopsis rusbyana podem ter sido usadas como misturas para a preparação. Curiosamente, os que mais se esforçaram para o esclarecimento da confusão taxionômica na identificação das plantas usadas na ayahuasca foram os dois químicos Chen e Chen (1939). Trabalhando no isolamento dos princípios ativos do yagé e da ayahuasca, eles sustentaram suas investigações com provas autênticas de espécimes botânicos (uma prática rara naquele tempo), e depois de uma profunda revisão em toda a literatura existente, concluíram que a caapi, o yagé e a ayahuasca eram nomes diferentes atribuídos à mesma beberagem, pois a planta que servia de base era a mesma: a Banisteriopsis caapi.
Embora o trabalho subseqüente, realizado nos anos 1950 por Schultes e outros, tenha estabelecido de vez que, além da B. caapi os espécimes malpighiáceos também estavam implicados na preparação da beberagem, não se deve desmerecer a contribuição de Chen e Chen, pois estes investigadores lançaram uma luz preciosa sobre a escuridão e confusão reinantes. O trabalho de campo posterior a eles tornou claro que as duas fontes botânicas da beberagem -conhecida pelos nomes de caapi, ayahuasca, yagé, natema e pinde -são as cascas dos troncos da B. caapi e da B. inebriens.
A primeira metade do século XX foi também o período das investigações químicas mais sérias sobre os princípios ativos da ayahuasca; como muitos dos trabalhos taxionômicos deram-se neste mesmo período, o progresso científico neste campo foi marcado pela confusão nas investigações realizadas simultaneamente por grupos distintos e independentes de investigadores. Mas aos poucos na medida em que estas investigações se ajustavam à literatura científica, a claridade começou a emergir daquele quadro sombrio.
Depois da harmina ter sido isolada das sementes da Peganum harmala pelo químico alemão Fritsch em 1847, um consenso científico posterior pôde finalmente estabelecê-la como o maior alcalóide Beta-carbolina dos espécimes Banisteriopsis. Esta identificação persistiu como inequívoca por muitas décadas até que, em 1905, um alcalóide denominado “telepatina” foi obtido de um material botânico não avalizado e chamado de “yagé” por Zerda e Bayón (citado em Perrot e Hamet, 1927). Em 1923, o químico colombiano Fischer Cardenas (1923) isolou novamente um alcalóide de materiais botânicos não confiáveis e também o chamou de telepatina; na mesma época, outra equipe colombiana, composta pelos químicos Barriga-Villalba e Albarracin (1925), isolou um alcalóide, a iageína. Talvez este tenha sido a harmina na sua forma impura; porém, a fórmula assinalada na época como o ponto de fusão mostrava-se inconsistente para uma estrutura de Beta-carbolina. E, para intensificar a confusão, o cipó com o qual Barriga-Villalba trabalhara tinha sido “identificado” como Prestonia amazonica, embora mais tarde ele mesmo tenha revisado esta identificação para Banisteriopsis caapi. Em todas estas instâncias, a falta de uma referência precisa dos espécimes botânicos deu origem a um trabalho de valor duvidoso.
A partir de 1926, este quadro foi melhorando até os anos 1950. Michaels e Clinquart (1926) isolaram um alcalóide de materiais improváveis, que chamaram de iageína. Logo depois, Perrot e Hamet (1927) isolaram uma substância que denominaram telepatina, sugerindo que esta era idêntica à iageína. Em 1928, Lewin isolou um alcalóide, nomeado por ele como banisterina; esta substância mostrou-se idêntica à harmina, que tinha sido previamente conhecida a partir da Arruda Síria pelos químicos da E. Merck & Cia (EIger, 1928; Wolfes e Rumpf, 1928). EIger trabalhou com materiais botânicos comprovados, identificados em Kew Gardens como Banisteriopsis caapi. Tendo como base seus próprios estudos com animais e ainda o estímulo de Lewin, em 1928 o farmacêutico Kurt Beringer usou as amostras de “banisterina’” doadas por Lewin, em um estudo clínico com 15 pacientes que sofriam de Parkinson pós-encefálico, e relatou efeitos espetacularmente positivos (Beringer, 1928). Esta foi a primeira vez que um inibidor MAO reversível teve o aval para o tratamento do mal de Parkinson, embora a atividade da harmina como um inibidor MAO reversível só tenha sido descoberta 30 anos mais tarde. O ocorrido também representa um dos poucos momentos nos quais uma droga alucinógena foi clinicamente avalizada para o tratamento de alguma doença (Sanches-Ramos, 1991).
Também trabalhando com materiais botânicos comprovados, supridos por Llewellyn Williams, do Chicago Field Museum, Chen e Chen (1939) confirmaram o trabalho de Elger, Wolfes e Rumpf; estes pesquisadores já tinham isolado a harmina dos galhos, raízes e folhas da B. caapi, e haviam também confirmado sua identidade com a banisterina isolada por Lewin. Em 1957, Hochstein e Paradies analisaram um material comprovado da ayahuasca, coletado no Peru, e dele isolaram a harmina, a harmalina, e a tetrahidroharmina. Nenhuma investigação dos elementos constitutivos de outros espécimes de Banisteriopsis foi realizada antes de 1953, data em que O’Connell e Lynn (1953) confirmaram a presença de harmina nos galhos e folhas de espécimes comprovados de B. inebriens, supridos por Schultes. Poisson (1965) confirmou posteriormente estes resultados, isolando a harmina e uma pequena quantidade de harmalina da “natema” peruana, identificada por Cuatrecasas como B. inebriens.
MEADOS DO SÉCULO XX (1950-1980)
A primeira metade do século XX foi o palco dos estudos científicos iniciais sobre a ayahuasca; neste período foram projetadas as primeiras luzes sobre as fontes botânicas deste curioso alucinógeno, com o objetivo de revelar seus constituintes ativos. Durante as três décadas que vão de 1950 a 1980, os estudos botânicos e químicos seguiram a passo acelerado, e as novas descobertas fundaram as bases para uma explanação mais clara das singulares ações farmacológicas da ayahuasca.
dimetiltriptaminaNo campo da química, as investigações de Hochstein e Paradies (1957) confirmaram e expandiram o trabalho anterior de Chen e Chen (1939), e outros. Os alcalóides ativos da Banisteriopsis caapi e de algumas espécimes semelhantes foram firmemente estabelecidos como sendo a harmina, a tetrahidroharmina e a harmalina. Contudo, só no final dos anos 1960 é que surgiram os primeiros estudos mais detalhados a respeito do uso de tais misturas na constituição do componente, se não invariável, pelo menos regular do preparado da ayahuasca (Pinkley, 1969). Logo tornou-se aparente que pelo menos duas destas misturas -a Banisteriopsis rusbyana (reclassificada por Bronwen Gates como Diplopterys cabrerana) e os espécimes da Psychotria, especialmente a P. viridis (Schultes, 1967) -eram adicionadas no preparado para “fortalecer e expandir” as visões. Ocorreu outra surpresa quando as frações dos alcalóides obtidos desses espécimes provaram ser o potente alucinógeno -embora oralmente inativo -N,N -dimetiltriptamina (DMT) (Der Marderosian e outros, 1968). Este componente foi conhecido por muitas décadas como sendo um resultado sintético, já que seguia-se à síntese inicial de Manske; mas, sua ocorrência no campo da natureza, bem como suas propriedades alucinógenas, já tinham vindo à baila alguns anos antes, quando Fish, Johnson e Horning (1955) isolaram seu reputado princípio ativo na Piptadenia peregrina (reclassificada mais tarde como Anadenanthera peregrina), a fonte do pó alucinógeno utilizado pelos indígenas do Caribe e também na bacia do Orinoco, na América do Sul.
A explicação farmacológica do final dos anos 1960 para a descoberta de Schultes, Pinkley e outros -segundo a qual a atividade da ayahuasca dependia de uma interação sinérgica entre as inibições-MAO das Beta-carbolinas da Banisteriopsis com a psicoativa, porém perifericamente inativa, triptamina DMT -já tinha sido fornecida em 1958 por Udenfriend e seus colaboradores (Udenfriend e outros, 1958).
Realizando seus trabalhos no Laboratório de Farmacologia Clínica do NIH, estes pesquisadores foram os primeiros a demonstrar que as Beta-carbolinas eram inibidores MAO potentes e reversíveis. Durante este mesmo período, o trabalho clínico com a DMT recentemente sintetizada e a auto-experimentação do psiquiatra e farmacólogo húngaro Stephen Szara (1957) conduziram à publicação dos primeiros estudos das ações profundas e passageiras dos alucinógenos nos seres humanos. Os experimentos de Szara também levaram ao primeiro reconhecimento de que este composto não era oralmente ativo, embora os mecanismos de sua inativação não fossem totalmente compreendidos. Ironicamente, algumas décadas mais tarde, Szara, o pioneiro da DMT, foi apontado como o cabeça do NIDA (Instituto Nacional do Abuso de Drogas).
Durante o célebre Verão do Amor em Haight-Ashbury, em 1967, realizou-se apenas um simpósio em São Francisco sob a tutela daquilo que na época era o Departamento Americano de Saúde, Educação e Bem-Estar. Sob o título de Busca Etnofarmacológica pelas Drogas Psicoativas -seu conteúdo foi publicado mais tarde pela gráfica oficial do governo com o título de “Publicação do Serviço de Saúde Americano nº 1.645″ (Efron e outros, 1967) -, esta conferência trouxe vários esclarecimentos ao campo emergente da etnofarmacologia psicodélica. Entre os seus participantes, encontravam-se o toxicólogo Bo Holmstedt do Karolinska lnstitute de Estocolmo; o etnobotânico Richard Evans Schultes; o químico Alexander Shulgin, que recebera recentemente seu título de doutorado; e Andrew Weil, pesquisador da maconha; além de muitos outros.
Era a primeira vez que se fazia uma conferência sobre a botânica, a química e a farmacologia dos psicodélicos, e, como era de se esperar, foi também a última, porque tal tipo de reunião não seria mais tutelada pelo governo. Mas, a conferência e a publicação deste foro, que se tornaram um marco da literatura psicodélica, revelaram ao mundo o estado em que se encontravam os estudos sobre a ayahuasca e seus aspectos multidisciplinares. O volume do simpósio incluiu capítulos sobre a química da ayahuasca (Deulofeu, 1967), a etnografia da sua preparação e dos seus usos (Taylor, 1967), e a psicofarmacologia humana das Betacarbolinas da ayahuasca (Naranjo, 1967). Mas, houve um comentário irônico sobre a escassez de conhecimentos daquela época a respeito da ayahuasca, segundo o qual os usos dos conteúdos de triptamina nas misturas, e sua ativação por intermédio dos inibidores-MAO, não vieram à discussão neste simpósio; a assunção que prevaleceu foi que a psicoatividade da ayahuasca era dada, mesmo que não inteiramente, em primeiro lugar pelas Beta-carbolinas.
Nos cinco anos que se seguiram a esta conferência, houve um progresso substancial com relação ao entendimento farmacológico e químico da ayahuasca. Schultes e os seus alunos Pinkley e Der Marderosian publicaram suas descobertas iniciais a respeito da DMT contida nas plantas que compunham o preparado (Der Marderosian e outros, 1968; Pinkley, 1969), estimulando a especulação de que a DMT -ativada oralmente pelas Beta-carbolinas -era a responsável por grande parte da ação da beberagem. Embora plausível, esta noção só pôde ser cientificamente comprovada na década seguinte.
Em 1972, Rivier e Lindgren (1972) publicaram um dos primeiros documentos interdisciplinares sobre a ayahuasca, relatando o perfil dos seus alcalóides e o das plantas que lhe servem de base, coletadas com o povo Shuar do alto rio Purus, no Peru. Na época, este documento era tido como um dos que melhor se dedicavam às investigações sobre a composição da ayahuasca e das plantas que lhe servem de base, porque todas tinham sido devidamente coletadas e comprovadas. Ali também se discutiam as numerosas plantas que poderiam compor este mesmo preparado, além dos espécimes Psichotria e Diplopterys, pois se fornecia pela primeira vez algumas evidências que indicavam a complexidade da tecnologia utilizada na sua mistura; na época, muitos outros espécimes eram usados como seus componentes.
Logo depois da metade dos anos 1970, uma equipe japonesa de fito químicos interessou-se pela química da Banisteriopsis, e relatou o isolamento de novas Beta-carbolinas e dos alcalóides pirrolidina, shihunina, e dihidroshihunina (Hashimoto e Kawanishi, 1975, 1976; Kawanishi e outros, 1982). A maioria das Beta-carbolinas relatadas não foi isolada de forma apurada, surgindo mais tarde a tese de que poderiam ser artefatos resultantes dos procedimentos do isolamento (McKenna e outros, 1984).
FINAL DO SÉCULO XX (1980 -PRESENTE)
Depois da publicação do documento de Rivier e Lindgren, no início dos anos 1970, não houve no resto desta década maiores progressos científicos. O trabalho de Rivier e Lindgren só obteve uma resposta satisfatória quando McKenna e outros (1984) publicaram os resultados das suas investigações químicas, etnobotânicas e farmacológicas sobre a ayahuasca e seus componentes, que se basearam em espécimes botânicos comprovados e nas amostras das beberagens usadas pelos ayahuasqueiros peruanos. Neste documento foi confirmada experimentalmente a teoria da atividade oral desta beberagem. A DMT mostrou-se como seu principal componente ativo, tomando-se oralmente ativa pela Beta carbolina mediada no bloqueio do MAO periférico.
As provas de algumas frações de ayahuasca dos sistemas MAO existentes no fígado dos ratos demonstraram que tais beberagens constituíam inibidores MAO extremamente potentes, inclusive quando diluídas em diferentes ordens de magnitude. Outra descoberta importante foi que os níveis dos alcalóides típicos, localizados na ayahuasca dos mestiços, excediam os níveis encontrados por Rivier e Lindgren na ayahuasca usada no alto do rio Purus, às vezes em uma ou mais ordens de magnitude. Baseados na conhecida farmacologia humana da DMT e das Beta-carbolinas, McKenna e seus colaboradores mostraram que uma dose típica (100 ml) da amostra da ayahuasca continha DMT o bastante para constituir uma dose ativa. Os investigadores sugeriram então que os baixos níveis de alcalóides encontrados nas amostras do povo Shuar, coletados por Rivier e Lindgren (1972), talvez tivessem resultado de diferentes métodos na preparação da bebida. A tribo Shuar tem o hábito de deixar a Banisteriopsis e as outras plantas de molho na água fria; eles não fervem a mistura nem reduzem o volume do extrato final, conforme geralmente se faz entre os mestiços. Tais fatores explicavam as discrepâncias na concentração dos alcalóides em dois estudos distintos, ou pelo menos forneciam uma explicação plausível para as diferenças.
A década de 1980 testemunhou também as primeiras contribuições do antropólogo Luis Eduardo Luna. Trabalhando entre os mestiços ayahuasqueiros nas proximidades das cidades de Iquitos e Pucallpa, no Peru, Luna foi o primeiro a chamar a atenção para a importância da dieta estrita, seguida pelos xamãs aprendizes, bem como para os usos específicos das plantas mais utilizadas na mistura (Luna, 1984a; 1984b; 1986). Ele também foi o primeiro a relatar o conceito de “plantas mestres” (plantas que ensinam), tal como muitas dessas plantas que compõem a mistura são vistas pelos ayahuasqueiros. Em 1986, McKenna, Luna e Towers publicaram a primeira tabulação compreensível dos espécimes utilizados nas misturas, juntamente com os elementos constitutivos de sua biodinâmica, assinalando que tais espécimes, relativamente pouco investigados, faziam parte de uma extensa farmacopéia popular, e que valeria a pena um exame minucioso de todos eles como possíveis fontes de novos agentes terapêuticos (McKenna e outros, 1995).
Em 1985, McKenna e Luna levaram a cabo seu trabalho de campo na Amazônia peruana, e foram os primeiros a discutir a possibilidade de se conduzir uma investigação biomédica da ayahuasca. A sólida saúde dos ayahuasqueiros, inclusive os de idade avançada, mostrou-se fora do comum, parecendo-lhe de extrema importância um estudo científico a respeito. Não eram poucos os desafios para um trabalho de tal ordem no Peru, pela dificuldade para coletar amostras de plasma. Os conceitos locais sobre a feitiçaria tornavam praticamente impossível que os ayahuasqueiros se submetessem a procedimentos médicos da coleta de amostras de sangue e urina. Mesmo tendo elaborado uma proposta preliminar para levar avante tal projeto, estes pesquisadores não conseguiram captar fundos e o estudo não se realizou.
Em 1991 contudo, surgiu no Brasil uma nova oportunidade para iniciar este estudo. McKenna e Luna estavam entre os diversos estrangeiros convidados para participar de uma conferência em São Paulo, organizada pelo setor dos Estudos Médicos da União do Vegetal (UDV), uma religião sincrética brasileira que faz uso da ayahuasca nas suas cerimônias. Embora, até então, as autoridades regimentais brasileiras tivessem dado permissão para a utilização da ayahuasca no contexto ritual de alguns grupos (pouco importando os nomes que lhes eram atribuídos, hoasca, vegetal, ou simplesmente chá), esta liberação estava sujeita a uma revisão. Muitos membros da UDV eram médicos, psiquiatras ou estavam ligados a outros tipos de especialidades médicas, e se mostraram mais receptivos à idéia da condução de um estudo biomédico da ayahuasca quando Luna e McKenna a propuseram. Isto fazia parte dos objetivos deste grupo, sendo uma das razões para o convite aos pesquisadores estrangeiros para a primeira Conferência sobre os Estudos Médicos da Hoasca.
Além da oportunidade de satisfazer a curiosidade científica a respeito da farmacologia humana da hoasca, a UDV precisava demonstrar às autoridades de saúde brasileiras que o uso prolongado do chá de hoasca era seguro e não causava dependência nem outras reações adversas. Os médicos da UDV tinham esperança que os cientistas estrangeiros colaborassem na pesquisa. A questão de como seria estabelecida a fundação de tal estudo estava ainda por ser respondida.
Depois da conferência de 1991, McKenna retomou aos Estados Unidos e iniciou o esboço de um projeto onde seriam descritos os objetivos do estudo que ficou conhecido como Projeto Hoasca. Inicialmente, a intenção era submeter a proposta a uma avaliação do Instituto Nacional do Abuso de Drogas; porém, à medida que o projeto ia tomando forma, tornou-se claro que os fundos para uma tal pesquisa não viriam de nenhuma agência governamental. Não somente por causa dos problemas de ordem legal, logística e política que dificultavam a liberação destas verbas, mas porque este Instituto não via com bons olhos qualquer proposta que não se alinhasse com a sua demonstração das presumidas conseqüências desastrosas do uso das drogas psicodélicas. Felizmente, McKenna mantinha conexões com a Botanical Dimensions, organização sem fins lucrativos que se dedica à investigação da etnomedicina de plantas importantes, e através dela conseguiu os recursos necessários para a pesquisa.
Com uma base financeira assegurada, pelo menos para uma pesquisa modesta, McKenna convocou a colaboração de diferentes talentos entre seus vários colegas das comunidades médicas e acadêmicas. Formou-se uma verdadeira equipe internacional e interdisciplinar de estudo, que contava com cientistas da UCLA, da Universidade de Miami, da Universidade de Kuopio, na Finlândia, da Universidade do Rio de Janeiro, da Universidade de Campinas, e do Hospital Amazônico de Manaus.
No verão de 1993, a equipe retomou a Manaus para iniciar a fase prática da pesquisa, que seria conduzida usando voluntários entre os membros do Núcleo Caupari de Manaus, uma das mais antigas e maiores congregações da UDV brasileira. O grupo permaneceu no Brasil por cinco semanas, administrando doses-testes do chá da hoasca aos voluntários e coletando amostras de plasma e urina para análises posteriores, pondo em prática também inúmeras medidas psicológicas e físicas.
O resultado constituiu uma das investigações mais esclarecedoras e multifacetadas sobre os efeitos químicos e da psicofarmacologia da droga psicodélica, entre as que já tinham sido realizadas neste século. Os efeitos agudos e prolongados, advindos da ingestão regular do chá da ayahuasca, foram criteriosamente medidos e caracterizados; fez-se também extensivas avaliações psicológicas e entrevistas psiquiátricas intensas com todos os voluntários. A natureza da resposta serotoninérgica à ayahuasca foi medida e caracterizada; mediu-se pela primeira vez no plasma humano a farmacocinética da maioria dos alcalóides da ayahuasca. Quando terminou a fase de pesquisa de campo, os resultados foram publicados em brochuras cuidadosamente revisadas (Grob e outros, 1996; Callawaye outros, 1994, 1996, 1998), recentemente sumariadas através de uma apurada revisão (McKenna e outros, 1998). Dentre as suas principais descobertas, destacamos a constatação de que os membros mais antigos da UDV, aqueles que mais passaram por esse tipo de experiência, mudaram sua vida e seu comportamento de um modo profundo e positivo; verificou-se ainda urna persistente elevação de seretonina nas plaquetas, possivelmente indicativa de uma modulação serotoninérgica similar de longa duração, ocorrendo no sistema nervoso central, que a longo prazo poderá refletir mudanças adaptativas nas funções do cérebro. O estudo também estabeleceu que o uso da hoasca é seguro, pelo menos dentro do contexto ritualístico, somado ao apoio existente no ambiente social da UDV, e não apresenta a longo prazo nenhuma toxidade adversa; além disso, sua utilização parece mesmo demonstrar que exerce influências positivas sobre a saúde física e mental.

O FUTURO DA PESQUISA SOBRE A AYAHUASCA
Tanto a fase de trabalho de campo como a de laboratório foram finalizadas há algum tempo; agora o projeto está no estágio final, até porque seus últimos relatos foram aceitos para publicação. Como este estudo da ayahuasca foi concebido como um estudo piloto, seus objetivos foram modestos e tentaram apenas indicar um direcionamento para futuras pesquisas. E por ter partido desse ponto de vista, obteve um enorme êxito. Como toda boa ciência, levantou mais interrogações do que respostas, sugerindo diversas questões para pesquisas posteriores. Uma vez que a ayahuasca teve uma demonstração clara de que é segura, não tóxica e terapeuticamente útil para a medicina, é de se esperar que as pesquisas futuras lhe devotem um interesse que esteja a sua altura, e que possam conseguir recursos financeiros para explorar todo seu potencial de cura.
ALGUNS TEMAS ESPECULATIVOS
Depois que o Projeto Hoasca encerrou seus trabalhos, passou a existir urna base sólida de dados para as investigações científicas futuras, porque este estudo teve como base o campo laboratorial e clínico. Entretanto, se nos colocarmos fora do perímetro da noite fria da razão científica, resta ainda um bom número de temas em torno da ayahuasca, que não podem ser resolvidos apenas pela ciência, pelo menos através dos métodos científicos que conhecemos.
A ayahuasca sempre esteve simbioticamente aliada à espécie humana; sua associação com as demais espécies remonta, pelo menos, à pré-história do Novo Mundo. As lições que dela adquirimos, no curso milenar de nossa coexistência evolutiva, podem ter acarretado implicações profundas naquele que se constituiu em um ser humano inteligente no interior da comunidade biosférica das espécies.
Apesar de não termos certas respostas, a questão da natureza e das significações existentes na relação entre o homem e o cipó visionário e, por extensão, com todo o universo das plantas mestres, nos mantém perplexos. Por que existiriam plantas contendo alcalóides, análogos aos nossos neurotransmissores, que se tornam capazes de “falar” conosco? E que tipo de “mensagem” estão tentando nos transmitir, se é que há de fato alguma? Foi apenas uma coincidência, puro acidente que guiou os primeiros e experientes xamãs para fazer uma combinação do cipó da ayahuasca com as folhas da chacruna, obtendo o chá que pela primeira vez deu ensejo à contemplação das “terras invisíveis”? Por que os ingredientes misturados para fazer um chá não foram utilizados como alimento? Ao ouvirem tais indagações, os ayahuasqueiros nos dirão simplesmente que “o cipó fala”. Outros, tentando ser mais sofisticados e racionais, fornecem melhores explanações, discorrendo sobre os alcalóides das plantas como se estes fossem mensageiros de interespécimes silvestres, ou portadores de pistas sensóriotrópicas, que capacitam os seres humanos a selecionar e utilizar as plantas biodinâmicas do seu ambiente.
pablo amaringo ayahuascaOutros, no entanto, como os irmãos McKenna no seu trabalho inicial e o antropólogo Jeremy Narby que fez uma reformulação da questão com uma teoria similar a deles (McKenna e McKenna, 1975; Narby, 1998), argumentam que as experiências visionárias propiciadas por plantas como a ayahuasca nos fornecem um insight -um conhecimento objetivo -a respeito do fundamento molecular do ser biológico, e ainda afirmam que este conhecimento objetivo, que só agora está sendo revelado ao mundo científico pelos métodos crus da biologia molecular, sempre esteve disponível para os xamãs e seus seguidores por meio de uma experiência direta com a sabedoria das plantas aliadas.
Tais noções são seguramente especulativas, não científicas; no entanto, na condição de observador do mundo contemporâneo, que vem se envolvendo com a ayahuasca de maneira pessoal e científica por tantos anos, cheguei à conclusão que estas especulações “libertárias” continuarão vivas, a despeito do quanto tentemos dessacralizar seu chá, tornando-o uma matéria para a química, a botânica e a farmacologia. Embora todas essas perspectivas sejam importantes, acredito que nenhuma delas jamais poderá explicar o mistério profundo e inquestionável que há na ayahuasca.
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